Dar nome às coisas: o problema são os ultraprocessados, não os “industrializados”
- fabio30br1
- 7 de ago.
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Patricia Jaime 25 de Julho de 2025 (Atualizado 25/07/2025 às 15h41)
FOTO:TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL
Enfrentamos uma disputa narrativa alimentada por interesses comerciais e pela difusão de desinformação. Tratar ultraprocessados como se fossem simplesmente “alimentos industrializados” obscurece o problema real e compromete a busca por soluções
No debate público sobre alimentação e saúde, confundir os alimentos industrializados com os ultraprocessados é um erro conceitual grave, embora comum. Essa distinção não é um detalhe técnico: ela diferencia alimentos que contribuem para uma dieta saudável de produtos que alimentam a pandemia global de obesidade e de várias doenças crônicas.
Alimentos industrializados não são necessariamente prejudiciais à saúde. Ao contrário, técnicas de processamento como secagem, moagem, pasteurização, fermentação e congelamento preservam nutrientes, ampliam a segurança sanitária e permitem maior acesso a alimentos que podem compor uma dieta saudável.
Ultraprocessados constituem uma parte dos alimentos industrializados. A classificação Nova, desenvolvida por pesquisadores do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP), e hoje adotada internacionalmente, define esses produtos como formulações industriais feitas a partir de substâncias extraídas ou derivadas de alimentos e de aditivos com função cosmética. São criados e promovidos para substituir alimentos e suas preparações culinárias e para maximizar conveniência, prazer e lucro, não a nutrição. Os ultraprocessados se caracterizam por conter ingredientes de baixo custo, como isolados proteicos, óleos, gorduras, amido modificado, açúcar refinado, corantes, aromatizantes, edulcorantes e emulsificantes, entre muitos outros. Também se destacam por sua conveniência, com longa duração e prontos para ingestão imediata, e pelo sabor acentuado, que pode favorecer o consumo habitual ou mesmo gerar dependência.
Estudos de séries históricas do consumo alimentar em diferentes países mostram como esses produtos desestruturam práticas culinárias e padrões alimentares historicamente construídos, reduzindo o consumo de alimentos in natura e minimamente processados e impondo um modelo de alimentação fragmentada e automatizada.
O problema sanitário não está na modificação do alimento pela indústria, mas na lógica produtiva e comercial dos ultraprocessados. Estudos populacionais e experimentais no Brasil e no mundo evidenciam que a participação desses produtos na dieta aumenta o risco de dezenas de doenças e agravos à saúde.
Sabemos que o entendimento de conceitos científicos pode ser desafiador, mas, no Brasil, a cultura alimentar oferece uma base sólida para esse diálogo. Existe um saber popular que se alinha às evidências: todo mundo sabe que arroz e feijão alimentam, e que macarrão instantâneo e refrigerante fazem mal à saúde. O Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado pelo Ministério da Saúde em 2014, é exemplo de como traduzir esse conhecimento técnico em recomendações claras, práticas e culturalmente relevantes.
Alimentos industrializados não são necessariamente prejudiciais à saúde. Ao contrário, técnicas de processamento como secagem, moagem, pasteurização, fermentação e congelamento preservam nutrientes, ampliam a segurança sanitária e permitem maior acesso a alimentos que podem compor uma dieta saudável

Ainda assim, enfrentamos uma disputa narrativa alimentada por interesses comerciais e pela difusão de desinformação. Tratar ultraprocessados como se fossem simplesmente “alimentos industrializados” obscurece o problema real e compromete a busca por soluções. Tal confusão conceitual permite explicações simplistas para problemas complexos.
Um exemplo dessa distorção é a tentativa de responsabilizar um único nutriente pela obesidade, como a frutose. Afirmações do tipo “é a frutose que causa obesidade e diabetes” ignoram décadas de pesquisas em nutrição. A resposta do organismo depende do contexto alimentar. A frutose na matriz natural das frutas, consumida com fibras, água e compostos bioativos, tem efeitos metabólicos diferentes da frutose isolada adicionada em bebidas adoçadas e ultraprocessadas. A literatura científica é clara: o problema não está na frutose das frutas, mas no consumo excessivo de açúcares livres que resulta do consumo elevado de ultraprocessados.
Uma metanálise publicada por Wang e colaboradores em 2021 na revista científica Circulation, com dados de mais de 1,8 milhão de participantes provenientes de 26 estudos de coorte prospectivos, demonstrou que o consumo regular de frutas e hortaliças está ligado à redução da mortalidade geral, cardiovascular e por câncer. Importante destacar que o efeito protetor foi observado no consumo de frutas inteiras, e não no de sucos ou produtos ultraprocessados. Além disso, outras evidências já demonstraram que o consumo de frutas in natura, com suas fibras e matriz alimentar preservadas, contribui para a modulação do impacto glicêmico e está associado à redução do risco de diabetes tipo 2.
Destaca-se que, para além do uso indevido de termos e das interpretações equivocadas, muitas vezes resultado do descuido com aquilo que deveria ser regra, isto é, o compromisso científico com o conhecimento acumulado, tais simplificações e confusões conceituais frequentemente funcionam como estratégias de digressão e obstrução. Elas desviam o debate público das evidências e atrasam o enfrentamento de problemas cuja base científica está bem estabelecida. O resultado é a propagação de desinformação e o comprometimento da capacidade da população de fazer escolhas alimentares adequadas.
Por isso, é preciso reforçar com clareza: não se trata de demonizar a indústria ou o processamento de alimentos, mas reconhecer que existe um modelo agroalimentar dominante baseado na produção e comercialização em massa de ultraprocessados, cujos impactos sanitários, ambientais e sociais são hoje inquestionáveis.
Chamar as coisas pelo nome não é apenas uma questão técnica. É uma necessidade urgente para proteger a saúde pública.
BIBLIOGRAFIA
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Wang DD, Li Y, Bhupathiraju SN, Rosner BA, Sun Q, Giovannucci EL, Rimm EB, Manson JE, Willett WC, Stampfer MJ, Hu FB...
Patricia Jaime é nutricionista, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP e coordenadora científica do Nupens/USP (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde).




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